Comércio internacional e disputas geopolíticas foram os temas centrais da mesa redonda organizada pela Associação Argentina de Estudos Fiscais (AAEF) em 5 de maio de 2025, em Buenos Aires. O evento híbrido reuniu acadêmicos renomados da Argentina, Uruguai e México para refletir sobre os desafios econômicos de um cenário global assolado pela incerteza.
Dado seu compromisso com a pesquisa, análise e melhoria do sistema tributário, não é surpresa que a AAEF tenha promovido esta atividade com o objetivo de continuar a promover abordagens abrangentes junto à comunidade acadêmica e profissional. Nesse contexto, o painel foi moderado pelo Dr. Juan Patricio Cotter, que ofereceu uma valiosa visão geral do contexto da ordem multilateral.
✔Juan Cotter – Uma abertura com perspectiva histórica
O Dr. Cotter lembrou que, após as Guerras Mundiais e a Grande Depressão, as potências ocidentais promoveram uma nova ordem multilateral que deu origem ao sistema econômico global contemporâneo, com marcos como os Acordos de Bretton Woods, a criação da ONU, o GATT e, mais tarde, a Organização Mundial do Comércio (OMC). "Nunca houve um período de tanta estabilidade e progresso na história da humanidade", observou ele. No entanto, alertou que esse equilíbrio foi alterado com o lançamento da doutrina América primeiro, em 21 de fevereiro, quando “a exceção começou a se tornar regra”. Com essas palavras, o acadêmico abriu o debate proposto pela AAEF sobre os desafios do comércio internacional e das disputas geopolíticas no cenário atual.
✔Gustavo Zunino – Os Estados Unidos e a virada protecionista
Após esta introdução, o Dr. Gustavo Zunino — ex-presidente e membro honorário da AAEF — fez uma apresentação que foi descrita como “magistral”. O jurista forneceu uma análise detalhada do estado atual da política comercial dos EUA, com foco nas implicações das medidas implementadas durante o governo Donald Trump e suas implicações sob a nova abordagem estratégica.
O expositor argentino definiu o cenário atual como um verdadeiro “Estado da arte» em termos regulatórios, destacando como este momento representa uma ruptura significativa com a ordem multilateral que predominou no comércio internacional nas últimas décadas. Na sua opinião, “estamos perante uma mudança de paradigma que desafia o sistema multilateral estabelecido após a Segunda Guerra Mundial”.
Ele destacou como a política tarifária dos EUA ficou drasticamente mais rígida desde fevereiro, com a imposição de tarifas de 10% e 25% sobre uma ampla gama de produtos importados, incluindo aço, alumínio, peças automotivas e produtos de países sem acordos de reciprocidade. "Não há dúvida de que estamos vendo uma estratégia comercial baseada no confronto, não na cooperação", disse ele.
Um dos pontos centrais da sua análise foi a instrumentalização da segurança nacional como justificação comercial, aludindo ao fato de certos insumos serem essenciais para a defesa e a uma suposta perda de capacidade industrial em relação aos concorrentes estrangeiros. "O argumento da segurança nacional está sendo usado para fechar mercados e recuperar a soberania industrial", explicou ele.
Além disso, alertou para a introdução de tarifas adicionais de até 100% para produtos de determinados setores (como logística e cinema) e países considerados "não cooperativos", iniciativa ainda sujeita a renegociação. "Esse tipo de medida está longe do espírito da OMC e nos aproxima de um cenário de guerra comercial", alertou.
O especialista enfatizou que essas políticas buscam não apenas proteger empregos e reativar o investimento doméstico americano, mas também revisar os acordos comerciais atuais, como o USMCA, para adaptá-los a uma nova lógica nacionalista e defensiva. Segundo Zunino, "o que está em discussão não é só economia: é soberania, poder e capacidade de decisão". Com a afirmação, o especialista ressalta que a reorientação das políticas comerciais está intimamente ligada a uma redefinição do papel do Estado na economia e na política internacional.
Zunino alertou que a mudança protecionista redefine as prioridades internas dos países e aumenta a incerteza global ao desafiar as regras do comércio global. "É uma mudança de paradigma que questiona os acordos multilaterais das últimas décadas", disse ele. Isso está forçando os principais blocos econômicos a repensar suas estratégias diante de uma ordem comercial mais imprevisível e fragmentada.
✔Pablo Labandera – Impactos no regime jurídico multilateral
O Dr. Pablo Labandera, doutor em Direito e Relações Internacionais e professor em prestigiosas instituições acadêmicas do Uruguai, fez uma apresentação estruturada em quatro pilares sobre o estado atual do regime jurídico do comércio multilateral.
1. Geopolítica e incerteza no comércio internacional. Ele começou descrevendo um cenário internacional marcado por conflitos crescentes, tanto comerciais quanto militares, com pontos focais na Ucrânia, no Oriente Médio e na África. Ele observou que o comércio internacional é severamente afetado por essas circunstâncias, especialmente pela vulnerabilidade de pontos estratégicos como o Estreito de Ormuz, "por onde passa aproximadamente 30% do comércio mundial de petróleo". Ele definiu essa etapa como um "potencial gargalo" para o comércio global e alertou que "além do debate entre globalização e desglobalização, o que predomina é a interdependência econômica", uma realidade que gera incerteza e remodela as cadeias produtivas globais.
2. Os Estados Unidos e a reformulação do seu papel global.Labandera explicou que a mudança estratégica dos EUA, que se aprofundou desde o governo Trump, é uma resposta a fatores estruturais. Ele citou uma apresentação de Stefan Miran, ex-assessor económico de Trump, argumentando que o país historicamente financiou dois bens públicos globais: segurança internacional e o dólar como moeda de reserva.
3. Consequências para o sistema multilateral de comércio. Essa mudança estratégica dos Estados Unidos, combinada com medidas protecionistas e processos de realocação industrial, enfraqueceu o sistema de comércio multilateral criado após a Segunda Guerra Mundial. “Não há mais consenso sobre as regras do jogo”, disse Labandera, destacando a erosão de um regime legal que durante décadas garantiu previsibilidade e cooperação.
4. Preocupações legais e necessidade de adaptação. Concluindo, Labandera pediu uma reformulação do marco regulatório do comércio internacional à luz dessa nova configuração global. Ele afirmou que o regime multilateral "enfrenta desafios sem precedentes" e enfatizou a importância de não abandonar os princípios do direito comercial internacional, mas sim adaptá-los a um mundo em mudança, onde tensões sistêmicas e interesses nacionais estão remodelando o poder econômico global.
✔Andrés Rohde Ponce – Território aduaneiro e disputas geopolíticas
Do México, o Dr. Andrés Rohde Ponce, presidente da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, foi o terceiro palestrante. Ele abordou as disputas geopolíticas no comércio internacional de uma perspectiva histórica e conceitual, integrando claramente as contribuições anteriores de seus colegas.
O Dr. Rohde iniciou sua apresentação definindo geopolítica como "a política desenvolvida por um estado com base em sua localização geográfica" e vinculou diretamente esse conceito ao de território aduaneiro, enfatizando que este último não é uma noção estática. “Os territórios aduaneiros têm sido constantemente reconfigurados", explicou, em linha com as transformações do comércio global.
Usando uma perspectiva histórica, Rohde ilustrou como conflitos e estratégias geopolíticas moldaram tanto os espaços territoriais quanto as dinâmicas comerciais. Ele mencionou exemplos antigos, como os comerciantes turcos que estabeleceram uma zona de livre comércio há mais de 3.000 anos a.C., e a Rota da Seda, que ele descreveu como uma "jornada de mercadorias em movimento", em vez de uma rota contínua. Ele também comparou as vocações geopolíticas da Espanha e da Inglaterra na América: enquanto os espanhóis se concentravam na mineração, os ingleses favoreciam o desenvolvimento de enclaves portuários voltados para o comércio.
Sobre a reconfiguração global após as Guerras Mundiais, Rohde observou que a assinatura do GATT em 1947 marcou o início do comércio livre e multilateral. No entanto, ele criticou o fracasso das rodadas de negociações multilaterais pós-1994, especialmente em questões como tarifas agrícolas.
Rohde destacou a opacidade das atuais políticas comerciais. Ele também destacou a substituição do princípio da Nação Mais Favorecida por regras de origem, revelando que mais de 60% do comércio global não é mais coberto por esse princípio, como evidenciado pelos 70% do comércio intrarregional dentro da ASEAN.
Rohde destacou o sucesso histórico do GATT, enfatizando sua flexibilidade como essencial para o crescimento do comércio global entre 1950 e 2024. Ele explicou que o GATT oferecia um conjunto de obrigações com exceções para cada estado, permitindo que o comércio internacional permanecesse funcional mesmo durante a crise financeira de 2008 e a pandemia de 2020.
Ele também abordou os desafios atuais do comércio eletrônico, mencionando que a OMC estabeleceu uma moratória na tributação do comércio eletrônico, mas alertou sobre a eliminação do regime tributário. de minimis por Trump, o que poderia ter um impacto negativo no comércio internacional.
O Dr. Rohde abordou a relação entre o México e os Estados Unidos, destacando como o USMCA forneceu proteção ao México, especialmente diante das políticas de Trump, e contribuiu para a estabilidade econômica. Ele enfatizou que o comércio bilateral é regido pelo princípio de "substituição de importações" e explicou que as exportações temporárias do México influenciam a balança comercial dos Estados Unidos.
Por fim, Rohde propôs repensar o conceito de território aduaneiro, destacando que o "território comercial dos Estados Unidos inclui parte do território mexicano", o que abre a possibilidade de uma "união aduaneira imperfeita, incompleta e gradual" entre os dois países..
✔Alejandro E. Messineo – Fechamento institucional
O Dr. Alejandro E. Messineo, presidente da AAEF, fez o discurso de encerramento, agradecendo aos apresentadores e enfatizando que, embora não tenha havido conclusões definitivas, "saímos com reflexões interessantes". Ele encerrou agradecendo aos organizadores e afirmando que "este tópico está apenas começando", abrindo caminho para uma reflexão compartilhada mais aprofundada.
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