1.- Há algum tempo, referi-me à sanção de uma norma interna (o “Número: DI-2023-131-E-AFIP-AFIP”), por meio da qual a Administração da Receita Federal (AFIP) passou a aceitar a possível Aplicação da instituto da reparação de danos como causa de extinção da ação penal (ver art. 59 inc. 6º do Código Penal) para alguns casos de crimes aduaneiros, sob a premissa de que “o impacto sobre o bem jurídico protegido é de natureza patrimonial"(1).
2.- Embora a jurisprudência já tivesse começado a acolher a aplicação deste instituto mesmo com a oposição anterior da AFIP, esta nova norma deveria ter favorecido ainda mais seu reconhecimento como forma alternativa de resolução do conflito.
Infelizmente, na prática isso não ocorreu, pois em diversos processos judiciais começaram a ser observadas constantes objeções por parte dos representantes dos serviços alfandegários. Nessas apresentações, não só foi reiterada a alegada inoperância do instituto, como também foi apontada a sua não aplicação por se tratar de crime que afeta interesses supraindividuais e com efeito que ultrapassa o mero dano económico a reparar. , especialmente quando a mercadoria envolvida está sujeita a proibições.
Assim, esse impulso inicial proposto pela AFIP começou a ser freado pela própria alfândega, que afirmou tratar-se de uma competência delegada aos funcionários que representavam a Agência (Disp. 76/2021), destacando que a nova norma estabelecia como regra geral, oposição ao pedido e que, ademais, se tratava apenas de um protocolo de atuação interna que não gerava direitos para terceiros, nem estabelecia procedimento de revisão.
3.- Diante desta situação geradora de insegurança jurídica e desigualdade, a alfândega decidiu recentemente sancionar um novo regulamento interno através do qual parece retornar àquele impulso inicial e estabelece as condições para que as áreas competentes consintam na admissibilidade da reparação integral a que se refere. para, detalhando os itens e/ou conceitos que, a seu ver, devem ser considerados para fins de determinação do dano patrimonial integral.
Trata-se da Instrução Geral 5/2024 de 18 de março do corrente ano (IG-2024-5-E-AFIP-DGADUA), na qual se indica que a origem do consentimento para a reparação integral do dano está sujeita à verificação da seguintes requisitos:
“a) A incidência sobre o bem jurídico protegido deve ser de natureza eminentemente patrimonial.
b) Deve haver concordância unânime de todas as defesas e do Ministério Público.
c) Não se verificarem as hipóteses previstas nas alíneas b), c), d), g) e h) do artigo 865.º; e artigos 866 e 867 do Código Aduaneiro.
d) Para tanto, deverá ser solicitada autorização expressa, nos termos do disposto na Instrução Geral n.º 2/17 (AFIP) e suas alterações.".
Além disso, é exigido o pagamento do dano patrimonial, das custas e despesas processuais, bem como a renúncia expressa a qualquer ação contra a Fazenda Pública e o abandono da mercadoria.
Quanto à forma como se constitui o dano patrimonial a reparar, o ponto 2 da norma estabelece que “deve constarentre outros, os seguintes itens e/ou conceitos"
“a) Os impostos aduaneiros e não aduaneiros eventualmente devidos, bem como o montante indevidamente pago pelo Fisco a título de incentivos à exportação e respectivos juros (…)
b) Os custos de armazenagem, depósito e/ou custódia das mercadorias envolvidas (…)
c) Os custos necessários à disposição final da mercadoria, no caso de ser aceite o abandono (doação, comercialização ou destruição por meios não nocivos ao meio ambiente), ou, a critério da Direção-Geral das Alfândegas, o reenvio. das mercadorias a cargo do responsável quando a mercadoria estiver proibida de importar, estiver sujeita à apresentação de licenças prévias à sua liberação ou se entender que os materiais resultantes de sua destruição podem ser nocivos ao meio ambiente (…)
d) Regulamentação dos honorários dos representantes fiscais (reclamação) (…)
e) Um valor equivalente à multa mínima que seria aplicável em caso de condenação, considerando-a como parâmetro objetivo para o cálculo do referido valor, que servirá para compensar o dano moral causado à pessoa supraprotegida. bem jurídico individual. ... ".
4.- Embora acolhamos com satisfação a intenção da alfândega de estabelecer diretrizes objetivas que visem evitar incertezas jurídicas geradas pelas diferentes opiniões dos advogados que a representam em cada caso judicial, entendemos oportuno tecer algumas considerações a esse respeito.
Antes de mais nada, é importante lembrar que, embora a posição da alfândega como “vítima” deva sempre ser ouvida no processo, ela não pode de forma alguma ser considerada vinculativa. A este respeito, vale mencionar que o Terceiro Juízo Criminal Econômico mencionou que “…a oposição da parte reclamante não constitui obstáculo à aplicação do instituto da reparação ao caso abrangente, uma vez que a concordância deste último não constitui requisito específico para a sua admissibilidade"(2).

Por outro lado, ao exigir que o bem jurídico “protegidos devem ser de natureza eminentemente patrimonial” e não exclusivamente patrimonial, note-se que é o próprio costume que rejeita esta tendência jurisprudencial que pretendia limitar a sua aplicação apenas aos casos em que o acusado do crime de contrabando apenas tivesse querido evitar o pagamento de impostos (3). Essa mesma ideia é reforçada pelo fato de que deveriam ter incluído na categoria de reparos a possibilidade de abandonar a mercadoria ou reexpedi-la quando se tratar de mercadoria proibida ou nociva ao meio ambiente.
Desta forma, este dispositivo reafirma que não cabe fazer qualquer distinção em função do que o acusado teria pretendido ou se se trata de um caso em que, além da existência de uma obrigação tributária sonegada, poderia ter ocasionado algum prejuízo adicional. efeito, como por exemplo, possível não cumprimento de uma restrição.
Ressalta-se, ainda, que se rejeita a posição restritiva que considerava que o benefício em questão somente seria viável se se tratasse de simples contrabando. Por outro lado, embora pareça razoável incluir o pagamento dos impostos relativos às operações analisadas na rubrica de reparação integral, não concordamos que, como princípio geral (4), seja exigido o abandono da mercadoria sujeita a imputação, nem o pagamento da multa, uma vez que ambas as questões estão vinculadas a sanções, ou seja, com a imposição de uma pena que não poderia ser aplicada e porque, além disso, no regime penal aduaneiro, são sanções “acessórias” que são estabelecido no art. . 876 inc. a) e c) do Código. Costumes que, por efeito da extinção da ação penal, não são aplicáveis (5).
Por todas estas razões, ainda que o mero pagamento de impostos possa não ser suficiente para efeitos de cumprimento de uma “reparação integral”, sendo, por isso, necessário oferecer algo mais para compensar a afetação não patrimonial causada ao bem supraindividual protegido. bem jurídico, consideramos que os parâmetros para definir Isso mais Elas não podem ser as mesmas para todos os casos de contrabando.
Neste sentido, partilhamos a posição defendida pelo Dr. Perez Barberá, na sua qualidade de Procurador-Geral da República, quando afirmou que “Se não houve tal evasão fiscal, porque, como neste caso (e em outros possíveis casos), o contrabando não envolveu o não pagamento de direitos aduaneiros, então o que repara integralmente o dano terá de ser um montante ou entrega. de bens tais que considerem o conteúdo patrimonial completo do crime... tal especificação deve assegurar, sobretudo, que o acusado não tenha se beneficiado de qualquer forma do crime em questão. Mas, além disso, deve considerar duas coisas: ... que compense de alguma forma a administração pública ... e, em segundo lugar, que o que é oferecido como compensação tenha, objetivamente, efeitos especiais de prevenção em relação ao infrator.… ().
Assim, o conteúdo de tal indenização não deve ser analisado da mesma forma quando o crime de contrabando tem um conteúdo mais patrimonial, do que quando a violação do controle aduaneiro tem menor ou nenhuma consequência econômica. Ou seja, se a cobrança estiver vinculada à afetação de controle aduaneiro para fins de redução do pagamento de tributos, a anulação da mesma não é apenas condição seno que não, mas também implica o valor mais importante a ser levado em consideração na determinação da compensação, enquanto o extra a ser oferecido para fins de compensação da administração pública pode ser menor. Nessa lógica, se o contrabando tem incidência predominantemente tributária, pagar o que é devido implica de alguma forma corrigir a situação e que o suposto réu não está sendo beneficiado justamente porque pagou tudo o que deveria.
Entretanto, nos casos de contrabando em que o impacto no controle aduaneiro tem consequências não econômicas, como a evasão de uma restrição, o valor extra a ser oferecido como doação deve ser maior para restabelecer a situação, o que se aplica aqui de forma em maior medida a possível entrega do suposto objeto de contrabando como requisito para que o acusado não seja beneficiado (isso desde que a irregularidade não possa ser regularizada, pois, do contrário, o abandono não seria necessariamente algo exigível).
Por outro lado, reiteramos que, embora esta nova instrução considere que tal reparação não seria possível nos casos de contrabando agravado do
Artigos 865, alíneas b), c), d), g) e h); 866 e 867 do Código. Alfândega, entendemos que dependendo do caso específico, sua origem também poderá ser analisada. Por exemplo, parece que alguma suposição que é coberta pela circunstância agravante de inc. poderia ser aceita. d) do art. 865 se, por exemplo, o crime médio também pode ser reparado ou, qualquer caso que se enquadre no inc. g) da referida norma – mercadorias sujeitas a proibição absoluta – em que o próprio legislador autorizou no referido caso o tratamento punitivo mais brando da infração de contrabando de menor gravidade (ver art. 947 do Código Aduaneiro).
Por todas estas razões, consideramos que a questão deve ser analisada em cada caso concreto à luz dos princípios em dubio pro reo (6) y pró-homens (7) A análise da reparação integral pode também incluir questões não só decorrentes da reparação de danos específicos, mas também aspectos que visem compromissos futuros e prevenção.
2. TOPE 3, autos N° CPE1477/2010/T01, intitulado “PUCHE, RAUL; GADALETA, IGNACIO E OUTROS S/ INF. LEI 22.415”, de 02/06/2023.
3. De acordo com o Incidente de aceitação nos termos da Lei 27.260 – processo n.º 529/2016, intitulado: “NN S/INF. LEI 22.415, JNPE No. 6, Sec. No. 11 – Arquivo No. não. CPE 529/2016/205/84/CA132- Despacho n.º 28.850 – Câmara B – Tribunal Penal Econômico Nacional – 25.3.2019. Aí se assinalou que “deve-se analisar a natureza da manobra e a finalidade por ela perseguida em cada caso concreto... pois não se pode considerar que se esteja diante de uma manobra realizada apenas para evitar o pagamento ou reduzir o montante dos direitos de importação e demais encargos correspondentes à mercadoria em causa, mas seria a introdução clandestina no país de mercadorias que, por esse meio, também ficariam subtraídas aos controlos ligados ao cumprimento das normas de segurança eléctrica estabelecidas para o consumo deste último dentro do país.” Esta mesma posição parece surgir de uma interpretação equivocada da decisão da Quarta Câmara do Tribunal Federal de Cassação Criminal no caso "RUCHTEIN, Sergio Leonardo s/ recurso de cassação" datado de 25 de junho de 2019 com Reg. No. 1269/19.4 , que, retomando precedente anterior, indica que só seria aplicável na medida em que o alegado crime de contrabando estivesse relacionado "exclusivamente" com obrigações aduaneiras de natureza tributária, o que, a nosso ver, não é adequado, pois o instituto não exige tal exclusividade.
4. Nesse caso, poderá ser exigida, por exemplo, na hipótese de não ser possível obter a intervenção prévia necessária à importação ou exportação da mercadoria.
5. Cfr. critério do SCJN no precedente de 28.6.2018 em re “Tortoriello de Boero, Mónica” em que se deixou a pena sem a qual se limitou a indicar que o pagamento da multa mínima era condição para a instituição para prosseguir. previsto no art. 76 bis do Código. Penal e ignorado que o Tribunal estabeleceu que a sanção de multa prevista no art. 876 ap. 1 do Código. Aduaneira, para os crimes de contrabando, tentativa de contrabando e ocultação de contrabando, é acessória à pena privativa de liberdade.
6. Ver parecer do Procurador-Geral da República no processo CPE 1326/2019/TO01/5 “Sepúlveda” entre outros.
7. Luis M. García recorda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos identificou expressamente o princípio pro homine como “um princípio de interpretação extensiva dos direitos humanos e de restritividade de suas limitações” (CIDH, OC 5/85) – Luis M. . García “Direito internacional dos direitos humanos: uma questão de direito internacional ou uma questão de direito interno?”
8. Mónica Pinto afirma que o princípio pro homine contém um critério hermenêutico que informa todo o direito dos direitos humanos, em virtude do qual se deve recorrer ao padrão mais amplo, ou à interpretação mais extensiva, quando se trata de reconhecer direitos protegidos. e, inversamente , à regra ou interpretação mais restrita quando se trata de estabelecer restrições permanentes ao exercício de direitos ou sua suspensão extraordinária. Este princípio coincide com a característica fundamental do direito dos direitos humanos, ou seja, estar sempre a favor do homem (por exemplo, art. 5 PIDCP; art. 29 CADH) art. 5 (PIDESC) art. 1.1 Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes: art. 41 Convenção sobre os Direitos da Criança) - Mónica Pinto, O princípio pro homine. Critérios e diretrizes hermenêuticos para a regulamentação dos direitos humanos em “A aplicação dos tratados de direitos humanos pelos tribunais locais”, Cels. Puerto Editores, 2004, p. 163.
Advogado. Especialista em Direito Penal pela Universidade Austral. Professor de Direito Penal Aduaneiro em diversas universidades públicas e privadas. Autor e colaborador de livros e artigos sobre esta especialidade. Atualmente é sócio do escritório Durrieu Abogados, responsável pelo Departamento de Direito Penal Aduaneiro.