InícioDoutrinaA ação declaratória de inconstitucionalidade e o esgotamento do procedimento administrativo

A ação declaratória de inconstitucionalidade e o esgotamento do procedimento administrativo

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Introdução 

Muitas vezes acontece que, diante de resoluções administrativas, os afetados recorrem delas pelos canais regulamentados para esse fim. Isto porque é necessária uma ordem normativa adequada aos casos relevantes submetidos à Administração Pública, o que é lógico num quadro de Estado de Direito, sempre assente nas prerrogativas da Administração Pública e, obviamente, também nos direitos dos contribuintes; Porque afirmar excessivamente o poder do Estado implica um claro abuso da lei. E isso indica claramente a existência do exercício de um uso contrário ao que a mesma lei prescreve, por excesso na sua execução, ocasionando uso indevido de determinados poderes legais. Ou seja, um “uso injusto, indevido, impróprio ou excessivo de um poder que a lei ou a autoridade nos concedeu” (1) Isso pode ser entendido na medida em que as normas devem ser interpretadas segundo suas finalidades, que jamais será a de conferir supremacia indevida a uma parte sobre a outra, conforme os valores do próprio ordenamento jurídico; de boa-fé, princípio ético norteador da sociedade, entendendo que a moral se expressa como valor ético jurídico, sendo a norma a expressão jurídica do respeito ao próximo, afetando a moral social e, portanto, a ordem pública. E esses princípios extrapolam o âmbito do direito privado, pois constituem princípios de todo o ordenamento jurídico, abrangendo o exercício das prerrogativas estatais e, consequentemente, a aplicação das normas que regem a atuação administrativa. 

Na prática comum, o Estado tende a invocar os critérios de oportunidade, mérito e conveniência para suas ações, mas esses critérios jamais podem ser excluídos do controle de legalidade do Poder Judiciário, sem que isso implique substituição de funções. (2)

Caso e Jurisprudência 

O caso em questão para este prestigiado meio especializado diz respeito a uma reclamação apresentada à Administração Pública Nacional (Direção Geral das Alfândegas) relativa a um processo de repetição do indébito no qual foi declarada a inconstitucionalidade dos Decretos contra os quais o contribuinte interpunha a ação. Assim, a DGA considerou que as vias administrativas deveriam ser esgotadas antes de se levar a questão da inconstitucionalidade ao poder judiciário. Embora seja penoso continuar debatendo questões já resolvidas e sobre as quais muito já se escreveu, em relação ao fato de que o esgotamento da via administrativa não pode se tornar impeditivo para a obtenção de resolução em tempo hábil quando é evidente a recusa da Administração Pública em fazê-lo, menos ainda se pode pretender ser válido sustentar tal exigência como ritualismo diante de clara e concreta arguição de inconstitucionalidade, a qual também exige efetiva tutela judicial para seu tratamento, uma vez que é o Poder Judiciário quem detém tal faculdade. No caso específico discutido (3), a Câmara Federal de Recursos Administrativos Contenciosos alude ao fato de que “lO Supremo Tribunal de Justiça afirmou que a declaração de inconstitucionalidade de leis e/ou decretos deve ser dirimida pelos meios próprios, não sendo adequada a via administrativa” (4). No mesmo caso, a Câmara fez referência a uma decisão anterior de 2021 5, na qual foi expressamente decidido que a acção de inconstitucionalidade “Não tem por objeto questionar a ilegitimidade de ato administrativo”; e que "o esgotamento A via administrativa não tem finalidade prática, pois a única consequência seria o adiamento da intervenção do Judiciário, único órgão competente para dirimir tal demanda. Ou seja, seria excessivo rigor formal exigir dos particulares o cumprimento do procedimento administrativo de forma inadiável e extrema, principalmente se se considerar que a questão não pode ser resolvida no foro administrativo, pois somente o Poder Judiciário é competente para se pronunciar sobre a validade constitucional das normas..

Conclusão

Situações como a que se discute nesta nota surgem constante e recorrentemente, com a Administração Pública insistindo em buscar a imposição da via administrativa prévia e seu esgotamento, chegando ao ponto de alegar inconstitucionalidade, o que evidentemente representa claro abuso de Direito na interpretação e pretendida execução da normativa vigente, incompatível com um adequado princípio do devido processo legal; Ainda mais quando tal ritualismo é inútil e representa um fardo inaceitável à garantia republicana de acesso à justiça. 

E isso não põe em causa qualquer competência para expedir normas administrativas ou sua execução, mas sim a razoabilidade e a legalidade de seu exercício e desenvolvimento sob a proteção de nosso ordenamento jurídico e sua hierarquia normativa; pois as leis e demais normas que são editadas são consequência da supremacia não só das normas, mas também dos princípios republicanos e dos critérios progressistas de direitos e garantias que emanam da Constituição Nacional. E esta não é apenas uma declaração romântica sobre o sistema republicano e o Estado de direito; baseia-se num sistema de defesa garantida que impede a obstrução do acesso à justiça através da utilização de instrumentos formais. 

Cabe destacar que, desde a reforma constitucional de 1994, foi estabelecida a hierarquia constitucional dos tratados internacionais que compõem o texto da Constituição Federal (art. 75 inc. 22), de modo que a regra clássica do esgotamento da via administrativa tornou-se obsoleta e à beira da inconstitucionalidade, quando se pretende impor tal regra de forma a criar obstáculo ao acesso à tutela jurisdicional efetiva. Nesse sentido, a manutenção do critério do esgotamento da via administrativa em caso como o aqui discutido não passa por um teste constitucional. E assim decidiu a Câmara Federal de Contencioso Administrativo, com decisão clara, concisa e representativa.


  1. Câmara Nacional de Apelações em Matéria Civil e Comercial, Câmara II, voto do Dr. Etchegaray, ao qual o Dr. Ehrlich Prat adere, sentença de 4 de dezembro de 1970, O direito, t. 41, pág. 185.
  2.  Falhas 308:2246; 311:2128; 314:1234; 323:3139
  3. Frigorífico Lamar SA c/ EN – AFIP – Decreto 793/18 s/ Processo de Conhecimento, Câmara Nacional do Contencioso Administrativo Federal, Sala II.
  4. Erros 315:1854
  5. ISACOVICH, Daniel Osvaldo e outro v. Estado Nacional – Ministério da Fazenda e Finanças Públicas e outros s/ Processo de conhecimento
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O autor é advogado. Membro do Instituto de Direito Aduaneiro e Comércio Internacional da Associação Argentina de Justiça Constitucional.

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